sexta-feira, 3 de maio de 2013

relâmpago-cap2


Longe de casa

Desde que chegara sentia um certo alívio com a solidão que estava proporcionando a si mesma. Estava tão aflita com a quantidade enorme de problemas que vinham de todos os lados e  de repente estar em um lugar distante e tão diferente de sua casa lhe confortava a tal ponto que a diferença entre o conforto de casa e aquele pequeno quarto que alugara pouco importava, pois as sutilezas da alma transbordavam poesia, amargura, tristezas e alegrias em intensidade. 
Enquanto preparava o jantar, o noticiário seguia mostrando cenas de violência. Acontecia uma guerra nos morros do Rio e policiais subiam com suas metralhadoras atrás dos bandidos para acabar com o tráfico. Nina ouvia aflita e desnorteada, de certa forma como se ela pudesse fazer algo para impedir a guerra. De fato não podia. E quanto mais se dizia isso, mais sentia que também era responsável pelo que estava acontecendo, e sem ter o que fazer, sentia seus sonhos se desmancharem,  e preocupações tomaram conta de sua vida de tal modo que não conseguia prosseguir. Terminou de jantar e pôs o prato na pia, lavou a louça, desligou a televisão e foi dormir, como mais uma pessoa revoltada com os acontecimentos do mundo revelados no noticiário. 
O dia amanheceu em paz, pouco se ouvia dos ruídos paranóicos de dias anteriores. Ela levantou, foi até o banheiro e viu o sangue descendo entre suas pernas pingar  na água da privada,  se limpou com o papel higiênico com uma sensação de perda que a fazia se emocionar e desejar a solidão, contrariamente ao que sonhava ou entendia ser a vontade suprema, a procriação. 
Os dias transcorriam e a reputação de Nina não estava boa. Apressadamente ela estudava e se esforçava para valer a pena, mas o esforço que fazia tornou-se maior com o passar dos dias. As pequenas tarefas de comer e tomar banho ganharam um valor tão grande que o estudo tornara-se futilidade embora estivesse impossibilitada de arranjar um emprego em qualquer setor. Aquele desarranjo de si mesma estava a ponto de destruir não apenas a subjetividade amorosa, mas também suas vontades necessárias. 
Nina sentou na mesa aonde costumava estudar e enquanto arrumava o material da faculdade viu sobre a mesa uma joaninha. Dizem que este pequeno inseto traz sorte e tentou interpretar o fato de ter encontrado a joaninha e da peculiaridade daquela em específico que era cinza. Sim, era uma joaninha cinza, com bolinhas pretas, como de costume. Pensou o que podia representar isso e tirou uma foto para marcar aquele encontro inesperado. Quis perguntar para ela, mas se viu impossibilitada de falar com um inseto e achou pouco provável que obteria resposta. Mais tarde veio a ler um romance em que um homem conversava com um sapo e o extenso diálogo que obteve pôde muito bem ser transposto para esse momento. Sendo assim Nina disse:
- Muito bem, você é uma Joaninha, isso eu sei, mas que eu tenha conhecido todas de sua espécie são vermelhas, porque você aparece aqui cinza?
E ela respondeu que hermeneuticamente eu poderia entender, e pelo que constava, Nina estava analisada e apta para entender que correspondências haveriam em suas memórias e a joaninha cinza.
-Nina, ela disse, com tanta história você não acha que pode abstrair um pouco o fato de todos os cisnes serem brancos ou todos os baicons provirem da morte de um porco?"
Nina refletiu por um instante e disse "eu sempre soube"e ela riu. Se foi a Joaninha ou a Nina que riu não se sabe ao certo, mas cabe lembrar que certo dia, sendo interrogada ainda muito criança, havia dito "essa cor é cinza". E essa primeira identificação havia sido legal, como uma joaninha cinza, na cor do esquecimento daquele dia que agora Nina zombava, em que ficara triste com a rejeição de uma menina, que não era ela, mas se chamava Joana e tinha brincos de ouro e pérola.
Nina passou a foto para o computador e usou como fundo de tela. Sempre se lembrava que um dia encontrou a joaninha cinza e com a sorte de ter lembrado o valor do esquecimento para o decorrer da memória. 

Um comentário: